Alguns teólogos pentecostais tem refletido sobre a natureza da hermenêutica dentro dessa tradição, oferecendo uma contribuição daquilo que acreditam ser a mais adequada (e até mesmo única) metodologia para mediar a relação entre o crente pentecostal e o texto bíblico.
De forma sintética, eles argumentam que essa relação (do pentecostal com o texto) dispensa a utilização de métodos "racionalistas”, mormente o Método Histórico-Gramatical.
Ainda de acordo com sua proposta, qualquer método que objetive a busca pelo sentido autoral, ou por aquilo que Deus queria dizer no tempo e no espaço da narrativa histórica, é uma utopia.
Em vez desses métodos modernos, devemos buscar entender o texto mediante uma apreensão intuitiva, pneumática, extática, enfim, experiencial.
Mas como se daria isso na prática?
Como tais experiências seriam avaliadas e julgadas?
O catedrático Kenner Terra, um dos principais expoentes e defensores dessa abordagem, nos diz que:
"Os limites seriam traçados pela comunidade e [métodos não racionalistas] que admitem a presença do leitor no ato da leitura. A comunidade em diálogo e a experiência do Espírito farão suas fronteiras dos sentidos da Bíblia. O texto será acessado através desses pressupostos e por métodos hábeis para responderem a novas perguntas. Por exemplo, caso usemos a Narratologia, perguntaremos não pelo autor histórico, mas compreenderemos o autor de papel, aquele que está inscrito no texto que por meio de minhas experiências e técnicas literárias, iluminado pelo Espírito, conseguirei apreender. Enquanto texto com estratégias literárias, não me perguntarei pelo o que passou na cabeça do autor, mas as potências e possibilidade de sentido que o texto tem. Quaisquer possibilidades de sentido? Não, mas as limitadas pelas ferramentas exegéticas usadas na leitura e compatíveis às minhas experiências, seja para delimitá-las, confirmá-las, estendê-las ou criticá-las. Assim, a experiência ilumina o texto e o texto, por sua vez, ilumina a experiência”.
Antes de prosseguir, quero dizer que acho muito importante toda essa reflexão.
É inegável que a experiência é um componente destacado na Teologia Pentecostal, de modo que qualquer abordagem hermêutica que negue o valor da experiência para o fazer teológico e interpretativo termina por alijar e inviabilizar o pentecostalismo.
Também reconheço que nenhum método é completo, vez que devemos buscar demais ferramentas que nos possibilitem acessar e apreender toda a verdade de Deus, expressa nas Escrituras de modo tão diverso.
O que seria da teologia cristã sem os métodos alegóricos empregados pelos Pais da Igreja para definir doutrinas caras ao cristianismo, como a da Triunidade Divina?
Contudo, me causa estranheza o fato de que os proponentes dessa abordagem hermenêutica pós-moderna ou pós-crítica rejeitem de modo tão enfático o MHG, relegando-o a uma ferramenta racionalista, que no seu modo de ver seria inadequado ao crente pentecostal.
Os teólogos batistas Roger Olson e Stanley Grenz no excelente “Iniciação à Teologia”, discorrem sobre a impossibilidade de se fazer Teologia, ou seja, de se interpretar o texto sagrado aquém das nossas experiências, contextos e culturas:
“Ao contrário do que às vezes pressupomos, não somos leitores neutros da Bíblia. Não conseguimos ler as Escrituras numa perspectiva que não seja afetada por nosso contexto histórico e cultural.”¹
Na esteira desse pensamento, o historiador e teólogo metodista Justo González juntamente com a Dra. Zaida Maldonado Perez reconhece que as contribuições das diversas ciências surgidas (ao menos de modo ordenado e sistemático) entre os séculos XIX e XX nos deram prova cabal de que a experiência do leitor interfere em sua interpretação e deve ser considerada:
“Um dos resultados práticos de todas essas ciências é que hoje compreendemos muito mais que antes, a ponto de nossa perspectiva e condição afetarem o que vemos e como vemos. Por exemplo, graças à psicologia agora sabemos sobre o modo como as realidades do inconsciente e do subconsciente afetam a maneira em que pensamos e sentimos. A sociologia nos diz também que o modo como vemos as coisas depende muito das nossas circunstâncias sociais. O que tudo isso implica é que os teólogos não podem mais falar como se fossem espíritos desencarnados, mas devem considerar suas circunstâncias sociais, assim como as da Igreja e as da humanidade em geral.”²
Diante dessa realidade, o que faremos?
Nos entregaremos ao subjetivismo?
Olson e Grenz nos fornecem um pressuposto fundamental qual não deve ser perdido de vista, a saber, o de que a Bíblia é revelação Escrita, pelo que devemos analisá-la como revelação bem como um texto, considerando tanto o ferramental fornecido pelo ensino teológico formal como pela relação espiritual e intimista que emana do leitor:
“No empreendimento teológico, tentamos trazer a percepção bíblica às questões centrais da fé no mundo contemporâneo, como o que significa ser a comunidade dos que confessam a fé no Deus revelado em Jesus de Nazaré e o modo de verbalizar e encarnar essa confissão no contexto contemporâneo. De modo muito mais significativo, a Bíblia – a visão do que significa ser povo de Deus, expressa em suas páginas – fornece o alicerce para a via cristã. Ela é tanto a fonte para entendermos o que significa ser povo de Deus quanto a norma para nossas crenças e nossa maneira de viver.”³
González e Pérez, conscientes desses dois horizontes (experiência e texto/autor e leitor) afirmam que o marco regulador é a Bíblia, pelo que deve-se buscar entender a revelação em seu tempo e contexto, sendo essa a tarefa primordial da Teologia.
Assim:
“A teologia é todo um processo no qual quem pratica não somente busca entender e interpretar as Escrituras e a doutrina cristã, mas que busca também que essas Escrituras e essa doutrina se formem. Não é então questão de meramente ler a Bíblia, por exemplo, como quem quer se inteirar de algo, mas é sobretudo questão de lê-la para que a Bíblia LHE DÊ FORMA A VIDA E AO PENSAMENTO [grifo nosso].”4
Como pode-se averiguar, não há qualquer inconsistência na utilização dos ferramentais do MHG e mesmo do MHC (ambos com ressalvas) e a afirmação da experiência como elemento imprescindível do processo hermenêutico.
Acredito tambem ser necessário submetermos nossas impressões à Igreja (a qual não se restringe à minha comunidade de fé, mas a todos os santos, de todos os lugares em todos os tempos), pois não podemos cair no erro de pressupor que o Senhor haverá de nos revelar todas as coisas.
A grande diferença entre o que teólogos citados tem proposto e o que os teólogos dessa nova hermenêutica propõem é a via de verificação e modelação da experiência, que para eles é a comunidade, enquanto para aqueles é a Bíblia.
Eles não se mostram, em minha opinião, competentes o suficiente para se desvencilhar da inescapável conclusão de que, se a minha experiência (a “palavra interior”, como dizem) é também revelação, deve, por isto mesmo, ser canônica, em nada diferindo das Escrituras.
Eles parecem fazer uma severa confusão entre revelação e iluminação.
A meu ver, essa proposta de ênfase no leitor, estética da recepção, “a morte do autor” e demais postulados da Crítica Literária, deixando de lado a nossa rica tradição teológica, composta pela contribuição de cristãos de várias matizes, são um convite ao relativismo.
Seria interessante saber destes teólogos qualé a sua posição acerca de temas como a homossexualidade e demais questões de ordem moral claramente condenadas pelas Escrituras.
Será que concordam com o que o Espírito diz à Igreja por meio de Paulo?
Concluindo, essa perspectiva pode ser classificada como um “empirismo evangélico”, que coloca todo o acesso à verdade a cargo da experiência, da observação das coisas, sinais, revelações, visões e demais experiências estáticas.
Dentre todas as passagens bíblicas que poderíamos usar, creio que nenhuma seja mais adequada do que o Salmo 119, que é uma ode à Palavra do Senhor escrita, onde lemos que “Lâmpada para os meus pés é tua palavra, e luz para o meu caminho” (v. 105).
O meu caminho (experiência) não é a lâmpada.
Leandro Lima
¹OLSON, Roger E. GRENZ, Stanley J. Quem Precisa de Teologia? p. 99.
² GONZÁLEZ, Justo L. PÉREZ, Zaida M. Introdução à Teologia Cristã. p. 35
³ OLSON, Roger E. GRENZ, Stanley J. Quem Precisa de Teologia? p. 105
4 GONZÁLEZ, Justo L. PÉREZ, Zaida M. Introdução à Teologia Cristã. pp. 38-39
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